Atualmente o termo Acessibilidade está na pauta daqueles que projetam e produzem a cidade, mas esse cenário é recente, por isso é tão importante entender a NBR 9050
A consciência acerca das barreiras arquitetônicas começa a surgir na década de 1930, a partir da mobilização de veteranos de guerra americanos, cujas sequelas dos combates os limitou a continuar exercendo suas funções básicas. Eles chamaram a atenção para os limites impostos pela cidade e suas edificações, que eram pensadas para pessoas com plenas habilidades motoras. Com o final da 2ª Guerra surgiu a primeira padronização nos Estados Unidos com base num conceito que derivou para o Design for all ou “Desenho livre de barreiras”. Tal conceito se fortaleceu com os princípios do Universal Design – Desenho Universal, postos em teoria e prática em 1987 pelo arquiteto americano Ronald Mace, que também era cadeirante. Suas ações e discursos acerca do tema viriam a influenciar espaços, mobiliário e objetos, gerando uma mudança de paradigma na forma como se projetava.
Desenho Universal
O Desenho Universal parte não da exigência legal de alguns recursos para facilitar a vida de pessoas com deficiência, mas da conscientização acerca de toda uma gama de usuários que pode se beneficiar de um projeto com foco no ser humano, suas diferenças antropométricas e suas limitações cognitivas, sensoriais e de mobilidade, incluindo crianças, idosos, obesos, pessoas muito altas ou muito baixas, etc.
Acessibilidade no Brasil
No Brasil, a acessibilidade começou a ser debatida em meados dos anos 1980, quando é também elaborada pela Associação Brasileira de Normas Técnicas – ABNT, a NBR 9050. Recheada de ilustrações, foi a primeira abordagem técnica sobre o tema no país, mas apesar de sua relevância a norma de acessibilidade passou longe da formação dos profissionais de arquitetura e urbanismo daquela década.
A NBR 9050 foi publicada pela primeira vez em 1985 e desde então, passou por três revisões: em 1994, 2004 e 2015. Na sua última versão trouxe em 148 páginas, parâmetros para diversas condições de mobilidade e percepção do ambiente. Embora a versão original contasse apenas com algo em torno de 50 páginas, incluindo as ilustrações do apêndice, é da primeira que as seguintes derivam.
Com o título “Adequação das edificações e do mobiliário urbano à pessoa deficiente”, a primeira versão da norma é direcionada à pessoa com deficiência e parte não necessariamente da concepção, mas da “adequação”. Nove anos depois, na primeira revisão, a NBR 9050 ganha um caráter mais abrangente e altera o título para “Acessibilidade de pessoas portadoras de deficiências a edificações, espaço, mobiliário e equipamento urbanos”. Na década seguinte, a segunda revisão altera o título novamente para “Acessibilidade a edificações, mobiliário, espaços e equipamentos urbanos” retirando o conceito de “portador”, uma vez que pessoas com deficiência não portam tal característica e colocando o foco não mais na deficiência, mas na acessibilidade. Neste mesmo ano, demos um salto para a democratização da norma e sua ampla divulgação através de um Termo de Ajustamento de Conduta firmado entre a ABNT e o Ministério Público Federal, disponibilizando gratuitamente na internet, o conteúdo de todas as normas brasileiras de acessibilidade. Os arquivos em PDF para download foram disponibilizados inicialmente no site da CORDE- Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa portadora de deficiência, mas hoje estão disponíveis em vários sítios.
Na sua atual versão publicada em 2015, longos textos com temáticas bem específicas são colocados em detrimento das ilustrações elucidativas presentes nas primeiras versões. Pela primeira vez a norma incorporou no texto, os princípios do Desenho Universal delineados por Mace no final da década de 1980. Tantos detalhes passaram a gerar a necessidade de normas complementares, dentre elas a NM 313 de 2007 (que substituiu a antiga norma de elevadores NBR 13.994) e a NBR 16.537 de 2016 que trata exclusivamente sobre sinalização tátil.
A evolução da NBR 9050
Ao longo de vinte anos, foram muitas as transformações sofridas pela NBR 9050. Novos sujeitos passaram a ser considerados, tais como o cão guia, os intérpretes de língua de sinais e as tecnologias assistivas. As especificações técnicas se estenderam aos transportes e à comunicação, ampliando o próprio conceito de acessibilidade que não mais se deteve exclusivamente à área urbana.
Ao mesmo tempo que se tornava mais abrangente também se tornava mais restritiva. Se estabeleceram outras referências com base na experiência do usuário e na adoção de novos equipamentos e tecnologias, dando suporte ao aparato legal que tratava do tema. Como foi citada em lei, acabou por ganhar força de lei e é hoje, uma das normas mais consultadas da ABNT. Os Conselhos de Arquitetura e Urbanismo (CAU) e Engenharia Civil (CREA) exigem que no momento de cadastro de um trabalho técnico, seus profissionais declarem o cumprimento à NBR 9050. Isso fez da acessibilidade um item inerente ao exercício projetual.
Banheiros
Os banheiros, por exemplo, dentre outras medidas, passaram a incorporar áreas internas de giro e manobra, as barras laterais deixaram de ser inclinadas, a altura do vaso sanitário se adaptou melhor à altura da cadeira de rodas, empresas de louças sanitárias criaram linhas específicas para tal fim, e o sanitário passou a contar com outros itens de segurança, como alarmes e barras junto aos lavatórios. Até mesmo o espaço interno da cabine comum ganhou uma área mais generosa para a abertura da porta, e passou-se a compreender a necessidade de uma sanitário familiar com entrada independente do sanitário comum. Tal medida permitiu que a pessoa com deficiência fosse auxiliada por outra de gênero oposto.
NBR 9050 Norma de acessibilidade – banheiros/ sanitários acessíveis
NBR 9050 Norma de acessibilidade – bacia sanitária
Escadas e rampas
As rampas já estavam regulamentadas em 1985, mas ao longo das revisões, os parâmetros se tornaram mais restritivos trazendo a necessidade de se atender ao menos duas formas de deslocamento vertical. Na última versão, passaram a vencer com a mesma inclinação, alturas menores, tendo como premissas a segurança, o conforto e a autonomia. Nas escadas, a relação entre a altura do espelho e a largura do piso foi revista.
Os corrimãos em escadas e rampas ganharam de forma mais enfática, a exigência de duas alturas (70cm e 92cm) e adotou-se a área de resgate como elemento importante em escadas de emergência. A sinalização tátil no piso passou a ser indispensável, considerando as funções de alertar e direcionar. Em 1985 já se previa à frente de rampas, a instalação de um piso de cor e textura diferentes do piso adjacente, mas os pisos táteis de alerta, aquelas “bolinhas” (elementos tronco cônicos), ainda não estavam regulamentados. Mesmo de forma discreta, a deficiência visual já estava colocada em 1985, mas somente em 2004 surge a regulamentação do Braille sem dispensar, no entanto, a sinalização visual e as figuras em relevo. São também estabelecidos os valores ideais de reflexão da luz determinando contrastes visuais que facilitem o fácil reconhecimento de elementos e objetos, por pessoas de baixa visão.
NBR 9050 Norma de acessibilidade – Corrimãos
Estacionamentos
As vagas para cadeirantes também já estavam previstas na primeira versão da norma, bem como a sinalização e a área lateral de transferência. Esta última, mais estreita que na versão atual. No entanto, a obrigatoriedade de vagas reservadas veio quinze anos depois da primeira versão da NBR 9050, com as Leis Federais 10.048 e 10.098, que estabeleceram respectivamente normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade e determinaram atendimento preferencial para pessoas com deficiência. O movimento se fortaleceu com a Lei nº 13.146 ou LBI – Lei Brasileira de Inclusão publicada em 2015, que também determinou a reserva de 2% das vagas para este público. A NBR 9050 de 2004 determinava apenas 1%, não exigindo a reserva em locais com até 10 vagas. Na sequência, outras leis se seguiram, atribuindo percentis para vagas de idosos e em algumas cidades, também para gestantes.
Circulação
Nas calçadas, já se previa em 1985 o rebaixamento de guias junto às faixas de travessia, determinando largura e inclinação adequadas. Em 2004, tais medidas incluíram diretrizes sonoras para os equipamentos semafóricos. Em 2015 surgem parâmetros para pontos de embarque e medidas de traffic calming, além da sinalização tátil detalhada na NBR 16.537 de 2016.
Curiosamente, a norma de 1985 parecia trazer o entendimento de que pessoas com deficiência não circulavam por todo lugar, portanto recomendava a sinalização para “educar os motoristas quanto ao seu comportamento em vias onde [houvesse] travessia de deficientes”. A ideia de equidade como princípio do Desenho Universal viria a se estabelecer somente com as políticas públicas inclusivas implementadas no início do século XXI.
Na primeira versão, a sinalização se resumia basicamente ao Símbolo Internacional de Acesso, o desenho de uma cadeira de rodas branca sobre fundo azul que deveria ser instalado quando o espaço fosse adequado para pessoas com deficiência. A proposta trazia medidas educativas, onde placas diziam ao motorista para trafegar com cuidado e à pessoa com deficiência qual caminho seguir. Algumas medidas visavam direcionar a pessoa com deficiência para uma entrada separada, admitindo-se a existência de um caminho específico para este público. A NBR 9050 atualizada traz o conceito do uso equitativo e a necessidade de se pensar espaços sob os princípios do Desenho Universal, eliminado qualquer tipo de discriminação ou segregação. Traz ainda o Princípio dos Dois Sentidos, garantindo que uma mesma informação seja transmitida através da percepção visual e tátil ou visual e sonora.
O que mais se pode esperar da NBR 9050?
O Brasil conta com um aparato espantoso de leis estaduais e municipais que se desdobram em centenas de manuais e cartilhas. Tais documentos trazem um resumo da NBR 9050, mas não a compreendem como um todo, ou seja, nenhum manual dispensa a leitura atenta da norma.
A última versão da NBR 9050 trouxe também critérios de ergonomia para a concepção de produtos e mobiliário, tabelas foram sensivelmente aperfeiçoadas e vários tópicos tiveram nova redação visando eliminar dúvidas em relação às versões anteriores. É importante destacar que a versão de 2015 também passou por ampla consulta pública e sua revisão durou cerca de três anos, contando com a participação popular e de entidades de interesse comum.
Apesar de densa e extensa, a NBR 9050 de 2015 já enseja um processo cuidadoso de uma nova revisão. Completando em setembro de 2020 cinco anos de sua última publicação, deverá trazer novos olhares para as questões urbanas e nossa forma de conceber, vivenciar e nos mover pela cidade, dando um amparo maior à acessibilidade em áreas rurais, espaços abertos e sítios históricos.
Talvez tenhamos que abrir mais os olhos para as experiências internacionais que, diferentemente do Brasil, tem trazido mais que especificidades, diretrizes, entendendo que a acessibilidade é um exercício contínuo, sujeita às constantes mudanças de comportamento e às novas necessidades que se impõe de tempos em tempos, conforme a humanidade evolui.
por Cristiane Kröling Bernardi
Baixe o PDF da norma ABNT NBR 9050
Referências
ABNT (1985a): ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS – ABNT. NBR 9050: Adequação das edificações e do mobiliário urbano à pessoa deficiente. Rio de Janeiro: ABNT, 1985. 59p. + apêndice n.p. [1ª edição].
MACE, L. Ronald; HARDIE, J. Graeme; PLACE, P. Jaine. Accessible Environments: Toward Universal Design. Disponível em: . Acesso em: 11 set. 2013.
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