Organizado por Raquel Alves, livro traz depoimentos de pessoas de todo o Brasil e busca oferecer conforto e informação
O dia em que estacionou o carro na garagem pela última vez, no ano de 2016, ficou marcado na vida de Raquel Alves. Diagnosticada com glaucoma aos 13 anos, a escritora e arquiteta foi perdendo a visão gradativamente, mas ainda não se considerava uma pessoa com deficiência. Tudo mudou naquele dia, quase 30 anos depois. E foi ali também o primeiro impulso para que uma das suas maiores obras tomasse forma, o livro “Muito além da visão”, que reúne histórias de pessoas que, como ela, possuem deficiência visual.
A opção de escrever em um momento como esse entrega uma bagagem familiar de Raquel. Filha caçula de Rubem Alves, foi ela a motivação para o pai estrear na literatura infantil. Raquel nasceu com lábio leporino, e inspirou o pai a abordar temáticas como o respeito às diferenças em obras lúdicas que conquistaram o Brasil inteiro. Hoje presidente do instituto que preserva o legado do escritor, Raquel também aproveita para dar vida a suas próprias obras.
“Muito além da visão” foi uma delas, lançada em 2019 pela editora Siano em versão física e audiolivro. O trabalho conta com 27 depoimentos de pessoas com baixa visão e outros tipos de deficiência visual, uma de cada estado brasileiro e do Distrito Federal. Em entrevista ao Guiaderodas, Raquel conta que a ideia surgiu a partir de um outro livro na mesma temática, que estava sendo lançado justamente na época em que reconheceu sua deficiência.
Pesquisando “baixa visão” na internet, para buscar referências sobre o assunto, ela descobriu a obra, organizada pela jornalista Mariana Baierle. Ela adquiriu o livro, participou de lançamentos, se aproximou de algumas pessoas. A partir daí, teve a ideia de uma coletânea com depoimentos de todo o Brasil. Mariana sugeriu que a própria Raquel tocasse o projeto, e dois anos depois o livro foi lançado.
Relatar para aproximar
“Eu realmente acho que levar histórias para as pessoas pode romper barreiras enormes”
afirma Raquel
Entre os relatos presentes em seu livro, há depoimentos de jornalistas, escritores e até de atletas paralímpicos. Narrando suas próprias trajetórias, a ideia é trazer empatia e aproximação com os leitores, tenham eles deficiência ou não.
“As pessoas com deficiência visual têm limitações, sim, mas não são necessariamente aquelas que as pessoas imaginam. É preciso um bocadinho de boa vontade das pessoas sem deficiência de nos escutar e prestar atenção para perceber do que somos capazes”
defende a organizadora
Sua própria experiência é um exemplo. Em pleno desenvolvimento do seu livro, Raquel passou a ter dificuldade de ler no papel. Mas o momento doloroso recebeu um afago: os depoimentos dos autores foram chegando. “É como se vozes amigas me dissessem: ‘calma, vai ficar tudo bem, eu estou vivendo super bem, você também vai’. Então a organização deste livro foi um processo muito curativo para mim, em que eu entendi que só iria ser difícil, mas que tudo daria certo.”
E deu. Mais do que “Muito além da visão”, Raquel é autora de livros infantis, palestrante e life coach. O fato de não enxergar não a impede de exercer sua profissão, nem limita suas escolhas em um restaurante, por exemplo, embora seja comum presenciar o garçom se direcionar ao seu acompanhante para saber o que ela quer pedir. E é aí que a autoaceitação e o empoderamento ganham espaço, como etapas que antecedem a educação das outras pessoas.
Uma dose de empoderamento
E para esse processo de se entender como uma pessoa com deficiência e se empoderar, o livro pode ser um aliado. Raquel cita, por exemplo, que foi bastante impactada por relatos de pessoas cegas que cuidavam da casa sozinhas. Quando não somos criados como limitados, uma série de possibilidades é aberta. “Você vai vendo que a gente se recria, se reeduca”, diz a escritora.
A obra está cheia de referências positivas. “Não é só o caso de mostrar que as pessoas continuam felizes, mas de mostrar que existem barreiras, sim, mas que elas são superáveis, que muita gente já superou e nós podemos superar também”, coloca Raquel.
O olhar que falta
A baixa visão consiste na perda de visão que não pode ser corrigida por óculos, lentes, medicação ou cirurgia. De acordo com o IBGE, estima-se que no Brasil 6 milhões de pessoas tenham baixa visão.
Mas Raquel atesta: o mundo que enxergamos é pequeno perto do mundo que sentimos. “O que nos faz amar uma pessoa? É o rosto dela ou é o abraço que ela dá, as palavras que ela diz, o jeito como ela nos trata? E isso é uma coisa do mundo de dentro. É do mundo dos sentimentos. Nós amamos as pessoas não por aquilo que elas são do lado de fora, mas por aquilo que elas são do lado de dentro”, afirma. “O mundo de fora, quando a gente quer superá-lo, não tem força que segure a gente.”
Você sabia?
O dia 15 de setembro é o Dia da Baixa Visão. A data foi instituída no estado de São Paulo pela Lei 17159/19, a partir de uma proposta de Raquel Alves junto à ALESP, a Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo.
E agora aproveite e confira nossa lista de aplicativos que podem ser grandes aliados de quem tem deficiência visual. O que não faltam são recursos que melhoram a qualidade de vida de todos!
Fontes:Agência Brasil, Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp
Luciana Faria
Escolheu o jornalismo para fazer da paixão por contar histórias sua profissão. Há mais de uma década no mercado editorial e poeta desde a infância, acredita que a palavra também pode transformar as pessoas e mudar o mundo!